Invisível | Parte 4

18:40

Nota: eu amei escrever esse capítulo e espero que vocês gostem de lê-lo! Caso curtam ler ouvindo música, recomendo Drown do Seafret e All I Want do Kodaline.

Pigmento
“É madrugada, o relógio marca 3h. Estou em frente a uma tela, o cheiro de tinta é inebriante e inunda o ar da minha pequena casa. Inclino a cabeça para o lado em uma breve análise. Em minha testa uma pequena ruga se forma.
Na manhã seguinte, saio de casa carregando uma tela pequena debaixo do braço. Passei o resto da noite pintando, então meus olhos estão envoltos em círculos roxos, mas isso pouco importa. É engraçado, penso, isso de ser invisível, as pessoas imaginam que vão pregar peças, ouvir conversas ou se esgueirar em lugares proibidos, mas no final das contas, o máximo que acontece é encontrar conforto no fato de que ninguém pode ver suas fraquezas ou piores momentos.
Entro na biblioteca calmamente, deslizo até o lugar desejado e deixo lá minha mais nova pintura. Sento-me no chão e aguardo. Minha atenção logo é sugada por um bebê que dorme tranquilamente no colo de uma criança um pouco mais velha. Provavelmente irmãos. Sorrio.
- Por que você não me ajuda? - Ariana fazia um bico magoado, os braços cruzados sobre o peito em sinal de protesto.
- Porque eu não quero ir lá pra fora - respondo simplesmente - Prefiro ler ou desenhar.
- Você é muito esquisito - ela aponta. Dou de ombros sem me importar e volto minha atenção para meu caderno esfarrapado.
Era uma tarde ensolarada de primavera, uma lembrança vívida, Ariana tinha 15 anos, e eu apenas 9. Ela queria me arrastar para o quintal, onde havia montado seu negócio da semana: uma barraca de limonada. Ela inventava milhões de funções para mim, que sempre incluíam a parte do trabalho que ela não queria realizar, ou como ela costumava dizer “ser fofo para atrair clientes”, eu não entendia muito bem o que aquilo queria dizer, e acabava sempre fugindo das suas maluquices empreendedoras
Me assustei quando ela bateu a porta com força e substituiu a expressão chateada por uma assustada.
- O que foi? - pergunto alarmado.
- Nada - ela mente e senta-se ao meu lado - Já viu meu celular novo? - pergunta animada.
- Milhões de vezes - eu reviro os olhos.
- Eu coloquei várias músicas nele, quer ver? - ela pisca seus olhos azúis excitados em minha direção.
- Tanto faz - eu resmungo.
- Aqui, óh - ela dá play e uma música pop começa a tocar, faço uma careta diante do seu gosto musical.
- Não gostei - digo sério.
- Novidade - ela sorri colocando as mãos sobre o queixo e me encarando com intensidade.
Mesmo com o evidente esforço da minha irmã mais velha, o ritmo animado não é capaz de abafar os gritos do lado de fora. Nessa época, eu ainda me importava, então levanto minha cabeça em direção ao som e faço menção de ir até a porta. Ariana puxa meu braço.
- Vamos ficar aqui, tá? - ela fala baixinho.
Eu a fito por alguns instantes. Tenho vontade de chorar, porque aquilo tudo estava acontecendo de novo, mas algo na calidez de seu olhar me acalma, como costumava acontecer. Anos depois eu finalmente compreendi: enquanto eu era nublado e cinza, ela era calorosa, ensolarada e cheia de vida, e sempre espantava minhas tempestades.
Ariana acaricia minha cabeça e me puxa em abraço apertado quando percebe que meus olhos estão marejados. Ela me aninha por alguns segundos e então sussurra - Você tá seguro comigo, Josh - e mais uma vez, eu não ouso duvidar.
Quando dou por mim, a garota de olhos escuros como as paredes da biblioteca já está largando desajeitadamente sua mochila em cima da mesa. Ela se encaminha resoluta até a prateleira, como se quisesse provar algo a alguém, e quando está prestes a deixar o livro de poemas lá, se depara com a tela cuidadosamente colocada no espaço vazio. Seu rosto se contrai em surpresa.
Ela puxa com gentileza o material e apenas o segura por alguns instantes relutante. Quando finalmente resolve olhar pra ele, seus olhos abrem-se em surpresa, e depois tornam-se curiosos. Assisto tudo com as pernas esticadas sobre o chão de madeira.
Na tela, um pedaço de mim. Um pedaço porque muito do que sou perdeu nesses anos de sumiço, mas ali, um pouco de como eu ainda me reconhecia ao olhar no espelho. Um auto retrato de poucos pigmentos, o azul dos olhos, o vermelho do cachecol, o preto dos cabelos.
Quero que ela me reconheça, nem que seja por poucos segundos, que ela saiba  para o que olhar.
A garota de roupas coloridas larga-se no chão com as mãos agarradas à tela e as pernas cruzadas. Coincidentemente, ou não, ela fica a poucos centímetros de mim. Viro a cabeça para encará-la, em minha expressão, um misto de de gentileza e expectativa. Sua respiração está tão próxima e ela tem cheiro de flores. Que surpresa. Suspiro.

Ela parece ouvir, e lança um olhar rápido em minha direção. Sinto algo no ar. Não a eletricidade que costuma aparecer nos livros. Nem mesmo cenas em câmera lenta. Mas uma força silenciosa que nos envolve e nos esconde em algum lugar. Um silêncio profundo, cheio sons mudos. O som de alguém surpreso, o som de alguém aliviado, o som de algo se quebrando, o som de alguém deixando de ser invisível."

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1 comentários

  1. Belo texto.
    Bom restante de semana!

    Depois do Hiatus de verão, voltamos com as postagens do blog! Não deixe de conferir uma crítica ao Carnaval da Globo esse ano.

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    Até mais, Emerson Garcia

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