Invisível | Parte 3

08:14



Fragmento

“Eu tenho um plano. Pela primeira vez no que parece uma eternidade, eu tenho um plano. Faço as coisas mais rapidamente hoje, e vou para a biblioteca com passos apressados, a manhã está clara e bonita, com o céu pincelado por um azul bem clarinho, como tinta aquarela diluída na água. Quando chego, escolho a mesa mais próxima do costumeiro lugar onde ela se senta. Passam-se alguns minutos e sinto minha fútil animação desvanecer. E se ela não viesse hoje? Para falar a verdade, algo me diz que ela não vem. 

É quando essa frase cruza meus pensamentos que ela aparece. Sorrio. Adoro o modo como ela me surpreende.

Espero ela deixar sua mochila florida em cima da mesa e sair rumo às prateleiras. Levanto-me sem receios e vou até sua mesa, pousando ali um copo de café com chantilly. Atrás do recipiente, alguns escritos meus onde deveria constar o nome dela, que eu ainda não sei qual é. Resisto a tentação de olhar suas coisas mais de perto e volto para a minha mesa. 

Quando ela retorna, empunhando o mesmo livro de ontem, seus olhos se abrem surpresos diante do café que não estava ali quando saiu. Ela inclina sua cabeça levemente para o lado pensativa e olha para os lados antes de tomar o copo nas mãos. Quando ela percebe que há algo ali, aproxima-se para ler, e sua expressão torna-se ainda mais confusa. Instantes depois ela abre a tampa do café e vê chantilly. Sorri timidamente.

A garota de olhos e cabelos pretos deixa o café onde o encontrou e caminha até a seção especificada por mim naquele copo. Ela passeia seus dedos pelas lombadas dos livros até encontrar o título procurado. Volta para a mesa com os olhos ávidos de curiosidade, senta-se desajeitadamente, folheia até encontrar a página onde mora meu poema  preferido e começa a lê-lo.

“Há um pássaro azul em meu peito que quer sair 
mas sou bastante esperto, deixo que ele saia somente em algumas noites 
quando todos estão dormindo. 
eu digo: sei que você está aí, então não fique triste. 
depois, o coloco de volta em seu lugar, 
mas ele ainda canta um pouquinho lá dentro, 
não deixo que morra completamente 
e nós dormimos juntos assim como nosso pacto secreto 
e isto é bom o suficiente para fazer um homem chorar, 
mas eu não choro, e você?”
- Charles Bukowski

Suas sobrancelhas se arqueiam e ela parece refletir, seus dedos finos e delicados permanecem sob a página desgastada do livro, e eu assisto tudo da minha cadeira desconfortável e barulhenta. Ela deixa meu livro de lado, e inconsequentemente toma o café, reviro os olhos, nada seguro tomar algo do qual não se sabe a procedência. Faço uma nota mental de dizer isso a ela um dia. Um dia.

Seus olhos tentam fixar-se em seu romance depois de tomar todo o líquido preto e fumegante, mas sua atenção parece completamente corroída pelas palavras que saltam do copo de café, escritos apressados em uma letra pouco atraente: seção, livro, página. Já eu não consigo desgrudar meus olhos dela, que está mais inquieta que de costume, e não larga o recipiente já vazio.

Quando ela se levanta para ir embora, algo puxa suas íris pretas em minha direção, meu coração erra algumas batidas e eu arriscaria dizer que ela me viu, pois seu olhar fica repentinamente focado, e ela se inclina em minha direção com segurança. E rápido como veio, aquilo se vai, e ela volta a piscar confusa. Ela balança a cabeça timidamente e sussurra “estou ficando maluca”. Mas antes de sair, agarra o livro de poesias, e o leva consigo junto ao peito. Sorrio uma última vez antes de levantar e sair também.

Quando abro a porta da minha casa, no início na tarde, dou de cara com a bagunça de pincéis e tintas que deixei para trás. Cavaletes se espalham por toda a sala, pinturas feitas, refeitas, começadas, porém não terminadas. Eu costumava viajar muito para pintar lugares e pessoas, não gostava de ficar em minha casa, especialmente quando Ariana não estava lá. E quando ela foi pra faculdade, aguentei pouco tempo antes de sair pelo mundo afora com uma mochila nas costas e as mãos sujas de tinta.

Ela reclamava que eu não a via muito, e quando terminou seu curso, decidi finalmente ficar em um só lugar, e depois que ela partiu para sempre, não tive mais forças para sair. 

Meus quadros, que antes eram coloridos e já haviam visto tanto do mundo, transformaram-se em pinturas frias das árvores que rodeavam minha casa, da biblioteca de paredes escuras e dos seus personagens, mas recentemente, adquiriram a beleza sutil e delicada de uma garota de cabelos negros, que protagonizava minhas obras mais recentes.

Minhas telas, assim como eu, estavam escondidas do mundo, eu não sentia a necessidade de mostrá-las a ninguém, e até agora, isso nunca me incomodara. Mas algo em mim mudou, e mudou para sempre, e enquanto eu encaro um tela vazia, decido fazer mais uma tentativa".

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