Invisível | Parte 2

07:07




Desbotado 

"Acordo no dia seguinte e mantenho meus olhos no teto por alguns minutos antes de me levantar. A superfície plana e branca costuma acalmar meus pensamentos. Coloco um pé de cada vez sobre o chão frio e inicio minha rotina matinal. Antes de sair, me encaro no espelho uma última vez, vejo aquele reflexo desbotado e desgastado, como a sombra do que um dia havia sido. Suspiro.
Caminho no frio da manhã e ajusto o casaco de botões ao redor do meu corpo, mantendo os braços em um abraço desajustado com a intenção de me aquecer. Quando entro na biblioteca silenciosa, respiro aliviado. Aquele lugar era um refúgio, em sua calmaria e infinitude, possuía tudo o que eu precisava.
Escolho os poemas de hoje sem prestar muita atenção nos títulos. Sento-me no mesmo lugar e aguardo, os livros apoiados precariamente em meus joelhos. Quando ela entra, sinto meu corpo se mover involuntariamente para frente. Hoje ela traja roupas rosadas e floridas, e seu cabelo é uma bagunça adorável. Depois que ela escolhe sua leitura de hoje, que de longe não consigo identificar, espero que se sente.
Levanto-me silenciosamente levando comigo meus poemas e me aproximo de sua mesa. Sento-me um pouco atrás, pego um dos meus exemplares e permaneço encarando-a por cima do livro. Seus olhos se movem com rapidez e sua mesa é uma bagunça de sachês de açúcar - muitos deles - fones de ouvido e anotações. Ela lê hoje algum romance adolescente. Reviro os olhos, mas acabo sorrindo.
Enquanto finjo ler o material a minha frente, espero em vão que ela olhe em minha direção. Lembro-me de quando costumava desejar que me vissem, já faz muito tempo. Eu havia me cansado de estar certo sobre as pessoas, sempre acreditando que elas eram capazes de me ver, de realmente me enxergar, quando na verdade, elas não sabiam nada sobre mim - e nem sobre si mesmas - e não se importavam com isso. Foi quando me escondi, e inconscientemente parei de acreditar, que finalmente desapareci, e não no sentido figurado.
Mas essa não é a história completa.
Depois que perdi minha irmã, eu com 19 e ela com 25 anos, o mundo começou a se turvar diante dos meus olhos. Todos os meus relacionamentos pareceram se desintegrar como papel queimado, e eu comecei a desistir de mim e dos outros.
Era inverno quando sai de casa pela primeira vez em meses, fui até um mercadinho, escolhi algumas frutas e uma caixa de leite, e na hora de pagar, não importava o que eu fizesse, a moça de cabelos vermelhos parecia simplesmente não me ver.
Achei que estava enlouquecendo, que aqueles meses enclausurados haviam me feito perder a cabeça, mas certo tempo depois, ser invisível se tornou mais agradável do que eu imaginava, fosse loucura ou não. Era mais fácil, mais simples, menos doloroso. E se a única pessoa que me via de verdade havia partido, não valia a pena ser visto por mais ninguém.
Estávamos em uma lanchonete colorida. As mesas eram tingidas de tons azulados e as cadeiras alaranjadas. O cheiro que impregnava o ar era de café e panquecas, sua comida preferida. Ela estava sentada a minha frente, os olhos azúis como os meus semicerrados em minha direção. Quando ela soltou seus cabelos claros do coque, o cheiro do seu shampoo preferido me atingiu quase tão rápido quanto seu soco de leve em meu braço direito.
- Você está brincando, né? - ela sorria despretensiosamente.
- Eu nunca brinco, Ariana, você sabe - balanço a cabeça levemente.
- É - ela assente olhando para fora - Isso é verdade. Mas dessa vez, eu preciso que você me escute e pare de fugir, você não precisa mais fazer isso, Josh - ela volta a pousar seus olhos sobre mim, a boca em uma linha fina.
- Não? - eu pergunto curioso.
- Não, porque eu nunca vou deixar você, caçula - ela afirma com tanta certeza nos olhos que eu não fui capaz de duvidar, e esse foi o meu erro, afinal.
Desperto do meu devaneio quando a garota de cabelos negros a minha frente derruba seu café por toda a mesa. Movo meu corpo em sua direção com a intenção de ajudar, mas lembro que ela não poderá me ver e desisto. Ela espalha guardanapos por toda a extensão da mesa e pragueja baixinho, mas para quando vê que um pouco do café alcançou uma de suas anotações, pega o pedaço de papel e sopra desesperadamente, e eu apenas a encaro fascinado. O que havia de tão importante ali? A curiosidade borbulha em mim. Desejo tanto que ela me veja, desejo tanto vê-la, mas o que fazer? Suspiro. Preciso entendê-la, desvendá-la… Mas então, em um clique, compreendo, não sou eu quem deve decifrá-la, mas devo deixar que ela desvende a mim".

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